] segunda-feira, junho 13, 2011
 
manual do jovem anarquista

quando vim (do que todo mundo chama de interior, mas eu me recuso a chamar Pelotas de interior, embora saiba que é) morar em Porto Alegre, e fiquei meses sem emprego, tomei alguns dos piores choques. não ter amigos, nem família, e nem grana, numa cidade grande (sim, PoA é uma cidade grande. perto de São Paulo ou Nova York, não. mas é, sim, uma cidade grande), foram alguns dos motivos pra tomar esses choques da vida. mas o fato de em Porto Alegre se pagar muito mal pelo trabalho de qualquer mortal e de a comida aqui ser caríssima (não raro, os restaurantes comuns servem uma comida ruim, perto da sempre gostosa comida de Pelotas) foram duas das primeiras verdades que esta cidade me jogou na cara.

[ olha, eu enrolo pra escrever. eu escrevo muito pra dizer uma coisinha mínima. se tu tá lendo isso pela primeira vez, acostume-se. pros leitores costumazes... bom, vocês já sabem disso, né? ]

aproveito pra dizer que adoro Porto Alegre (quando vim morar aqui, detestava) e que acho que posso vir a morar fora daqui, mas vou sentir muita falta.

meu primeiro emprego aqui foi a prova dessa péssima mania de gaúcho de sub-pagar (tem hífen isso?) qualquer serviço. eu ganhava mal pra burro. alguns lugares pagavam melhor, mas tinham também esse esquema que sempre achei odioso na nossa querida área da comunicação: sujeito não tinha hora pra entrar (diretor de arte começa a trabalhar lá pelas 9h30, 10h...); mas também não tinha hora pra sair (pudera começar a trabalhar 10h! nego saiu da agência às 3h!). eu ganhava menos de 700 reais e pagava um aluguel que era mais da metade disso. mas a piada mesmo era o "vale refeição" (sim, era piada entre os colegas, inclusive). bom... consta na lei trabalhista que o funcionário que trabalha 8h deve ter uma das 3 opções: ou ganha vale transporte e tempo pra ir em casa almoçar, ou tem cantina com comida fornecida pela empresa ou ganha vale-refeição. eu trabalhava em uma empresa dessas que dá vale-refeição.

opção perfeita pra empresas que sabem como obedecer a lei sem precisar desobedecer a regra básica do capitalismo: obter mais lucro, mesmo que às custas de qualidade, detrimento dos funcionários ou fornecedores, etc... em 2003, quando a maioria dos lugares já praticava o vale-refeição de no mínimo 10 reais, o que a empresa onde eu trabalhava pagava era de 5 reais. já era assim havia eras e continuou assim por ainda alguns anos depois de eu ter saído de lá. já alarmava pelo valor em si, não fosse o detalhe: o escritório ficava em uma área-semi-nobre de Porto Alegre. os restaurantes mais próximos, portanto, eram bem caros.

e quase sempre péssimos.

aí tinha esse tal restaurante que ficava bem pertinho do escritório. e ele tinha uma comida de média pra ruim. (eu, que cozinho bem, achava ainda pior) e não bastasse a gordura extra que colocavam naquela comida, o valor do buffet por peso sempre relacionava meia dúzia de grãos e uma folha de alface a um valor alto. buffet por quilo é a alegria do operariado, né? pois esse, não. invariavelmente, um prato mal servido sempre me custava no mínimo 10 reais. meio do mês e meus vales acabavam. ou eu trazia sanduíche de casa, né? sempre a opção dos jovens e mal-alimentados diretores de arte em início de carreira numa cidade como Porto Alegre.

eu, que estava acostumada a comer bem e barato em Pelotas, comendo uma comida ruim, mal feita e cara. não era o tipo da coisa que me fazia gostar da cidade, né?

a única maldita coisa naquele restaurantezinho de bosta era o caldinho de feijão.

sexta-feira. dia de feijoada. a culinária mineira daquele restaurante (mineira com um toque chinês, porque a comida tinha mais óleo que todos os rolinhos primavera do China in Box juntos em um ano) primava pelos trocentos tipos de feijoada neste dia. e tinha o meu querido caldinho de feijão. bem tratado na pimenta. sempre quentinho. servido numa cumbuquinha fofa. e CORTESIA.

aos que esperavam uma mesa era destinada uma fila de jovens operários de bairro demi-nobre segurando as cumbucas cheias daquele caldinho. em tese, qualquer um podia servir até mais de uma porção daquele caldo.

e eu já disse que era cortesia?

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aqui, preguiçoso leitor que não tem paciência de ler todo o prelúdio, começa o relato objetivo deste manual do jovem anarquista. cuzão!

bom. caldinho bom, quentinho e gratuito num restaurante que consumia injustamente meus míseros vales-refeição, à ordem de dois por almoço, em troca de uma comida muito mais ou menos? aqui está o contexto, amigos, de onde surge a oportunidade anárquica.

passei a ficar a semana inteira esquentando comida congelada no microondas da empresa ou comendo sanduíches. pra chegar na sexta e fazer meu pequeno ato de terrorismo intelectual político. comia duas, três cumbuquinhas daquelas, cheias do caldinho. depois servia um prato de leve salada, exagerando nas alfaces, agriões e folhas em geral. e gastava menos que um vale-mísero-de-5-reais-refeição.

na mente podre da maioria dos capitalistas axilares, que não têm nenhuma noção de política mas são capitalistas porque isso os alivia da culpa do consumismo e da vergonha de viverem num mundo injusto e continuarem querendo perpetuar a injustiça, o que eu estava fazendo era uma ofensa e uma infração ou algo que o valha. na minha mente de quem não pretende ser oprimida e nem pretende oprimir, e de jovem operária ganhando uma miséria pra que, às custas do meu trabalho, outros pudessem ter seus luxos cada vez maiores, eu estava exercendo meu direito lógico à compensação. pois se eu pago 10 reais por uma comida de merda que custaria 5 em qualquer lugar normal, nisso já está incluso até esse pequeno ato anarquista.

não se preocupem, capitalistas de plantão, sempre prontos a fazer um tsc tsc tsc. o restaurante continua de pé. com uma comida péssima vendida a um preço cada vez mais ofensivo. mas aquele caldinho de feijão me manteve firme e forte pra suportar o período de adaptação a uma cidade grande, que paga mal e cobra caríssimo por tudo. firme e forte o suficiente pra fazer o que eu queria da minha vida: estudar, terminar mestrado e doutorado e hoje estar aqui dando risada desse episódio bizonho da minha vida. e, também, com saudade do caldinho.

[ Penkala ] 17:47 ] 4 comentários

 
eu uso óculos




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