] sexta-feira, julho 20, 2012
 
Vivaldi. Verão, último movimento


às vezes espero na janela, desse porto londrino que em dias como hoje até parece uma cidade do Brasil, com sol e um leve calor. espero pra ver se lá no longe enxergo algum barco. e do barco, espero notícias que das tormentas e do vento gelado desconheço todas. mas quem sabe o que se passa na mente desses estivadores, que descem apressados, com sacos sobre os ombros, e me dizem sempre que de notícias não trazem nada. perguntam: tu és a moça das cartas na garrafa? eu respondo que quero apenas saber se das tormentas em alto mar sobrou alguma coisa. eles dizem: não se sabe. nunca se sabe.

quem entende o coração dos homens que derivam no mundo e acostumam com as tempestades e, como transatlânticos vitorianos querem afundar lá, no mar mesmo? quem entende o coração dos marinheiros que escolhem a tormenta. quem entende?

não entendo. nem do coração dos homens do mar, nem dos seus desígnios, nem talvez de sua predileção pela vida solitária da tormenta. só entendo dos olhares que ficam. do meu, que de tempos em tempos precisa limpar o embaçado do óculos e tornar a fazer foco, e que procura ao longe algum navio que traga notícias. e do capitão da tormenta, que vi de partida. tem terra no coração do capitão. eu sei que tem. e tem água salgada, eu sei que tem. enquanto há terra, não há água salgada. enquanto não há terra, transborda a água salgada. mas adianta dizer que eu sei é dos olhos do capitão? adianta, se o capitão carrega também a tormenta? adiantaria dizer que eu também carrego dessa mesma tormenta dentro de mim? adianta dizer que mergulharia e pegaria o capitão pela gola da capa, no fundo do mar, porque por tantas tormentas eu já passei que minhas mãos estão cortadas de tentar segurar meu próprio manche? talvez não. o que eu entendo, o pouco que compreendo, é que há um menino que tem medo dentro desse coração de tempestades de Vivaldi. e dentro desse menino, a saudade que eu deixei. o que entendo, o pouco, é o que vi. e o que vi, no meio de tantas tempestades cruéis às quais sobrevivi, é o que teimo em acreditar. eu vi medo onde dizia decisão. eu vi confusão onde dizia certeza. eu vi alguém bom onde dizia pra eu sair de perto. eu vi amor onde dizia ódio. eu acredito no que meu coração diz. e ele sempre me diz que sou capaz de mergulhar profundidades, de carregar o corpo de um homem adulto nas costas, de sustentar meu próprio corpo cansado enquanto a tempestade não cansa de castigar. só não sei por que me subestimam. por que acreditam que eu não seria capaz de compreender a natureza dos homens? eu compreendo. até demais. o que atormenta o tempestivo capitão? o ódio que tenta domar? ou algo que ele quer esconder de si mesmo, que tem medo de revelar por achar que isso faz dele menos capitão? talvez eu saiba, e não quero acreditar porque sou humana demais pra não achar que isso só pode ser brincadeira do destino.

no porto já tentei fazer exercícios de futurologia, de adivinhar quais notícias o próximo navio vem trazendo. desisto de todos. não sei, de fato, o que há de acontecer amanhã. se vou me afogar nessa água salgada nadando horas e horas buscando aquilo que eu sei que está lá. se vou escrever até meus dedos fazerem sangue. se vou desistir de tudo e atravessar o Canal da Mancha à nado. enquanto olho na janela, em direção ao porto, penso que o destino é cruel. porque eu sei que meu coração não está errado naquilo que persegue. e que eu devo esperar que as tormentas passem pra ver tudo de forma mais clara. por que eu teria ganho tanta força pra aguentar essas tempestades, e um coração teimoso, e uma coragem de mergulhar no mar gelado e arrancar dele o que o vortex engoliu? não sei do futuro, e, como boa jornalista, não acredito nos boatos dos marinheiros sujos que dizem por aí que há um monstro à solta no porto. meus próprios monstros eu mato todos os dias. só acredito que ainda não é hora de largar o manche. já passei por tempestades piores, já venci tormentas com o corpo em frangalhos, a mente ausente, o coração dilacerado. e venci. não acredito em signos, acredito em arianos. nasci no dia em que o Titanic afundou. mas não tenho medo de nenhum duro e frio iceberg. contratei bons músicos. se alguém quiser me achar, estou com as duas mãos no manche. mas pronta pra me jogar ao mar. e voltar de lá com um homem desacordado e com a pele azul. mas vivo. nem que eu tenha que bombear o coração dele com as minhas próprias mãos. enquanto os músicos tocam o último movimento de Verão, do Vivaldi.

[ Penkala ] 15:31 ] 0 comentários

 
eu uso óculos




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